(Citação parcial para estudo, de acordo com o inciso III do art. 46 da Lei nº
9.610, de 19 de fevereiro de 1998)
Reflexões para estudos referentes à biografia de Francisco Cândido Xavier
Chico Xavier (do livro Atenção)
“Em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, morava um casal humilde, como tantos outros casais do interior. Ele, João Cândido Xavier, operário de profissão, vendedor de bilhetes de loteria nos momentos de aperto. Isto é, durante o ano inteiro. Sua mulher, dona Maria João de Deus, de prendas domésticas. Mãe de família na velha tradição mineira. Dedicada ao lar, paparicando os filhos, ensinando-os a rezar de mãos postas. Ambos católicos. Por educação e Fé. Viviam cheios de filhos, de pobreza e de harmonia, numa pequena casa térrea. Foi ali que, a 2 de abril de 1910, nasceu um menino, que na pia batismal recebeu o nome de Francisco. Na certa, em homenagem ao humílimo e pobrezinho santo de Assis.
A Vida da família seguia serena. Os filhos, agora, já eram nove. Chico crescia como qualquer moleque do interior. Corria pelo quintal, brincava e subia em árvores, de pés descalços, peito nu, aguçando os ouvidos quando o apito estridente da maria fumaça ecoava por aquelas lonjuras. Livre como os pássaros. Estava com cinco anos e, como qualquer criança normal dessa idade, sentia-se irresponsável e feliz.
Então, surgiu o inesperado: dona Maria João adoece. A princípio parecia coisa passageira. A doença, porém, progrediu rapidamente, e ela já pressentia o toque frio da foice da morte. Como a família viveria? João Cândido, inveterado sonhador, achava-se desempregado. Sobreviveria apenas à custa dos bilhetes de loteria. A praça era pobre e ele arriscou-se pelas cidades maiores da redondeza: Sabará, Conceição do Mato Dentro, Curvelo.
Preocupada, dona Maria João decidiu distribuir os filhos por parentes e amigos, que se dispuseram a criá-los.
‘Eu estava de pé, no pé da cama, e o queixo encostado na madeira. Na cabeceira do leito, minha mãe me olhava. E eu lhe disse palavras muito duras para um menino. Por que a senhora, mamãe está dando seus filhos para os outros? Não quer mais seus filhos, é isso?’ (Chico Xavier)
Dona Maria respondeu que iria para o hospital. E disse uma frase que impressionou o menino: ‘Se qualquer pessoa falar que eu morri, é mentira. Não acredite. Vou ficar quieta, dormindo, não responderei a ninguém, mas não vou morrer’. E, no dia seguinte a este diálogo, a 29 de setembro de 1915, ela morreu.
Na diáspora da família Xavier, Chico vai para a casa da madrinha, dona Maria Rita de Cássia, velha amiga de sua mãe. Ali começariam as atribulações do menino, que mais parecia um daqueles pequenos heróis de Dickens, cuja infância é curtida com os mais atrozes castigos e humilhações. Mas havia uma diferença. Ao contrário dos personagens do grande romancista inglês, em geral com um destino adulto medíocre, Chico estava destinado a altos voos: tornar-se um professor de humildade e demonstrar que as manifestações do maravilhoso não são travessuras do capeta. Mas, chegar até lá, precisava passar no vestibular do sofrimento. E dona Rita, seria uma professora intransigente.
A qualquer pretexto, a vara de marmelo cantava no lombo do menino. Para pescoções taponas e beliscões dispensavam-se pretextos. E, em sua crueldade, dona Rita inventava requintes dignos de um inquisidor. Um de seus caprichos consistia em enfiar garfos no ventre do garoto. O suplício durava horas. O sangue começava a escorrer. Chico soluçava, berrava, implorava. Mas a madrinha não lhe permitia retirar os garfos. Aos poucos, abriu-se uma imensa chaga na barriga. A dor impedia-o as vezes, até de caminhar ao fundo do quintal, único lugar onde encontrava um pouco de paz. Além disso, via-se obrigado a usar uma camisola comprida de menina, chamada de mandrião, feita com pano de saco de farinha pintado de azul.
‘Ao me levantar pela manhã, eu não me animava a tomar café: ficava esperando a primeira surra do dia. Depois, sim, tomava meu café com aquela alegria de já haver pago uma parcela.’
E as surras vinham acompanhadas do mesmo refrão:
‘Esse menino está com o diabo no corpo.’
Talvez para exorcizá-lo, dona Rita obrigava-o a longos jejuns. O sofrimento ia polindo o menino. Mas a capacidade de resistência é limitada.
Um dia, angustiado e com o corpo marcado de vergões, Chico correu para o fundo do quintal. Ia refugiar-se à sombra amiga de velhas laranjeiras. Ali, começou a rezar. Pouco depois, viu dona Maria João ao seu lado. Lembrou-se das palavras de sua mãe, de que não ia morrer. E, com a lógica de seus cinco anos, não se surpreendeu.
‘Quero ir embora daqui mamãe. Só vivo apanhando…’
A mãe recomendou-lhe paciência:
‘Quem não sofre não aprende a lutar.’
‘Minha madrinha diz que estou com o diabo no corpo…’
‘Não se importe. Tudo Passa e, se você tiver paciência, Jesus nos ajudará para ficarmos sempre juntos.’
Depois desse dia, Chico nunca mais reclamou. E nem chorava. Suportava tudo calado, de olhos secos. Ante esta reação, que considerava ofensiva, dona Rita mudou o refrão. Agora, dizia:
‘Chico é tão cínico que não chora nem mesmo a pescoção.’
O menino defendia-se dessa acusação com um argumento escandaloso. Contava que, toda vez que suportava uma surra sem chorar, via sua mãe. A partir daí, passaram a chamá-lo de menino aluado.
Dona Rita criava também como filho adotivo um menino chamado Moacir, que nesta época andava lá pelos seus 12 anos de idade. Há muito ele tinha uma imensa ferida pustulenta e crônica na perna. Não havia remédio capaz de fazer sará-la.
Um dia, dona Rita, resolveu recorrer aos préstimos de Ana Batista, uma antiga curandeira da localidade denominada Matuto (hoje Santo Antônio da Barra), nos arredores de Pedro Leopoldo.
Ana Batista examinou a ferida e, com sua sabença irretorquível, concluiu:
‘Aqui só uma simpatia vai dar resultado.’
‘Como é essa simpatia?’, indagou dona Rita.
Assumindo um ar ainda mais sério, a velha benzedeira ensinou:
‘A ferida precisa ser lambida por uma criança, em jejum, durante três sextas-feiras seguidas.’
A princípio, até dona Rita achou a ideia meio absurda. Mas logo concordou:
‘Chico serve?’
‘Chico é aquele menino aluado, que mora em sua casa? Serve sim.’
Esse diálogo ocorreu numa quinta-feira, pela manhã. À tarde, Chico já sabia da estranha missão que lhe estava reservada para o dia seguinte. Ao se dirigir à sombra das bananeiras, onde costumava orar, encontrou o Espírito de sua mãe. Chorando, contou-lhe tudo.
‘Você deve obedecer, meu filho.’
‘Então devo lamber a ferida de Moacir?’
‘É melhor lamber feridas que causar aborrecimentos aos outros. Obedeça a sua madrinha.’
‘E isso vai sarar a perna do Moacir?’
‘Não, pois não é remédio. Seja humilde, meu filho. Se você ajudar e lamber a ferida, nós faremos o remédio para a cura.’
No dia seguinte, Chico iniciou a sua repugnante missão.
‘Durante três sextas-feiras seguidas, em jejum, tive de fazer aquela coisa horrível. Fechava os olhos, pedia forças ao Espírito de mamãe e começa a lamber a perna do menino. Foi duro. Na hora, tive muita raiva de minha língua não ser maior, para com uma lambida só eu resolver o problema e acabar com o suplício. Felizmente, a danada da ferida começou a sarar na terceira sexta-feira, e não precisei mais fazer aquilo. E pedi a minha mãe para dar um jeito de ninguém mais ter ferida, pelo menos em Pedro Leopoldo.’
Quando viu a perna do filho adotivo melhorar, dona Rita, pela primeira vez em dois anos, dirigiu-se a Chico de maneira carinhosa:
‘Muito bem, Chico. Você obedeceu direitinho. Louvado seja Deus!’
E durante uma semana o menino não apanhou. Mais alguns meses e ele estaria livre da tirania da madrinha.
‘Dona Rita foi minha educadora.’
***
Mas, como tudo, essa educação também chegou ao fim. Um dia, cansado da solidão, João Cândido resolveu casar-se de novo. Encontrou uma mulher excepcional, dona Cidália Batista. Tão excepcional que exigiu que o marido reunisse os filhos dispersos pelas casas dos parentes e amigos.
Quando voltou para casa, Chico encontrou dona Cidália de braços abertos. Encorajado, abraçou-a. A intimidade veio rápida. Mas Chico era uma criança estranha. Vivia falando de suas visões, contava como em sonhos se deslocava até lugares de paisagens muito diferentes das de Pedro Leopoldo. Mas a madrasta era mulher de grande coração, que escondia sob sua simplicidade um espírito sagaz, carente apenas de instrução.
‘Ela me disse que não entendia aquilo, mas acreditava em mim. E disse uma coisa que nunca me esqueço: ‘Olha, Chico, eu não entendo disso, ninguém entende, mas você é um menino inocente e está dizendo a verdade. Um dia, quem sabe? Vai aparecer alguém que o entenda e explique suas visões e as vozes que você ouve’.’
Uma das primeiras providências de dona Cidália foi recomendar ao companheiro que matriculasse os filhos na escola. A situação, porém, não era fácil. João Cândido bem que gostaria. Mas o dinheiro, no fim do mês mal dava para as necessidades domésticas.
Como espichar os minguados trocados, a fim de que dessem para livros, cadernos, lápis, caneta?
Mulher inventiva, dona Cidália logo encontrou a solução. A casa tinha um daqueles amplos quintais dos bons tempos. Por que não plantar uma horta? Chico venderia os legumes e hortaliças na rua. Cada molho de couve, alface e almeirão, ou unidade de repolho, era vendido a tostão. Com o dinheiro arrecadado, os filhos de João Cândido poderiam adquirir os trens indispensáveis para frequentar a escola. E, de tostão em tostão, tinham juntado, em dezembro de 1918, 32 mil-réis.
Em janeiro do ano seguinte, graças à horta, Chico Xavier entrou no grupo Escolar São José. Não foi aluno brilhante, chegando a repetir o quarto ano primário, se bem que por motivo de saúde. Mas seu relacionamento com o Além foi certamente o mais surpreendente.
Muitas vezes, durante as aulas, Chico ouvia vozes de Espíritos, ou sentia mãos sobre as suas, guiando-lhes os movimentos na escrita, sem que os demais alunos percebessem.
‘Isso me criava muitos constrangimentos.’
Em 1922, comemorou-se em todo país o centenário da independência. O governo de Minas Gerais instituiu diversos prêmios de redação para alunos da 4ª série primária. O assunto era livre, desde que pertencesse à história do Brasil.
Chico, então com 12 anos, cursava o 4º ano. A professora, dona Rosária Laranjeira, marcou data para a composição. Naquele dia, quando se preparava para iniciar a tarefa, Chico viu um homem ao seu lado, ditando-lhe o que deveria escrever. Assustado, indagou ao companheiro de banco se ele também estava vendo o homem. O menino negou, dizendo que aquilo era ilusão, consequência de sua preocupação. Enquanto isso, o homem ia ditando as frases de abertura do trabalho.
‘Dona Rosária Laranjeira era católica fervorosa começou a assustar-se com minhas composições.’
Chico pediu, então licença a professora. Levantou-se, aproximou-se do estrado sobre o qual ficava a cadeira de dona Rosária, e lhe disse em voz baixa:
‘Dona Rosária, perto de mim, está um homem, ditando o que devo escrever.’
Mulher compreensiva, que ‘tinha a virtude da caridade’, segundo Chico, ela perguntou, também em voz baixa:
‘O que o homem está mandando você escrever?’
Chico repetiu a frase: ‘O Brasil, descoberto por Pedro Álvares de Cabral, pode ser comparado ao mais precioso diamante do mundo, que logo passou a ser engastado na coroa portuguesa…’
Admirada, mas tolerante, dona Rosária mandou-o sentar-se e concluir a prova. Não importava se o texto fosse ditado ou não por um homem invisível. O importante era concluí-lo.
Algumas semanas depois, a Secretaria de Educação de Minas divulgava os resultados do concurso, disputado por milhares de estudantes de todo o Estado: Chico Xavier recebera menção honrosa.
Os colegas começaram a espalhar o boato de que Chico havia copiado o trecho premiado de algum livro. Outros se recusavam a duvidar de sua honestidade. As opiniões dividiam-se. Havia os que acreditavam em seus dons, se não mediúnicos, pelo menos literários. Um dia, um colega desafiou-o: ‘Já que sua prova fora ditada por uma pessoa do outro mundo, por que esse homem não reaparecia, dispondo-se de algum assunto proposto pelos próprios colegas?’
No exato momento do desafio, Chico viu o Espírito, que se dizia pronto a escrever. Comunicado o fato à professora, dona Rosária hesitou. A pressão dos colegas, no entanto, era irresistível. E ela concordou que Chico fosse ao quadro-negro e escrevesse diante de todos.
‘Qual é o tema?’, indagou um dos alunos. Uma outra, cujo pai construía então uma casa, sugeriu que fosse areia. Todos riram, considerando a areia uma coisa desprezível. Mas o tema foi mantido.
Logo, Chico pôs-se a escrever no quadro-negro o que o Espírito ia lhe ditando: ‘Meus filhos, ninguém escarneça da criação. O grão de areia é quase nada, mas parece uma estrela pequenina refletindo o sol de Deus…’
(‘A composição foi escrita com muitas ideias que eu seria incapaz de conceber nos meus 12 anos de idade’).
A partir de então, dona Rosária proibiu que se fizesse qualquer comentário, na sala de aula, a respeito de pessoas invisíveis.
***
Com a normalização de sua vida afetiva e carinho de dona Cidália, Chico nunca mais viu o Espírito da mãe. Mas seu intercâmbio com o Além continuava muito ativo. À noite, o menino erguia-se da cama e punha-se a perambular pelo quarto. Num tom apaixonado, mantinha longos diálogos com interlocutores invisíveis. Pela manhã narrava as inacreditáveis aventuras vividas no Além por parentes ou conhecidos mortos.
‘Meu pai estava querendo internar-me num sanatório para enfermos mentais. Aconselhado por amigos, achava que o melhor era meter-me num hospício.’
Dona Cidália, mais ponderada, aconselhou João Cândido a levar o menino ao Padre Sebastião Scarzelli. Esse missionário italiano, antigo vigário de Matozinhos, cidade próxima a Pedro Leopoldo, era tido como homem prudente e bondoso. A princípio, considerou tudo aquilo como extravagâncias. Fantasias da idade. E sugeriu que João impedisse o filho de ler jornais, livros e revistas suspeitos. O menino devia estar impressionado com tais leituras. Os Espíritos não voltam do outro mundo.
Diante da sinceridade e convicção do menino, porém, Padre Scarzelli pareceu ter mudado de ideia.
‘Ele me disse que eu era um menino muito lúcido que tinha visões. E que, ainda que não entendesse, considerava um absurdo me internarem.’
A solução proposta pelo padre foi a melhor possível. A fábrica de tecidos de Pedro Leopoldo, atualmente pertencente à Cia. Industrial Belo Horizonte, tinha, então, vagas para meninos. Se ele fosse trabalhar lá, auxiliando no precário orçamento do pai, este não teria coragem de interná-lo.
‘Fui trabalhar como tecelão. Entrava às três da tarde, saía à uma da madrugada. Dormia até às seis, ia para a escola, saía às onze. Almoçava, dormia uma hora depois do almoço, entrava de novo na fábrica. A poeira do algodão começou a sujar-me os pulmões. Após algum tempo, o médico recomendou que eu trocasse de emprego.’
***
Apesar desse regime duro, concluiu o curso primário em 1923. A professora Rosária Laranjeira, acreditando na potencialidade intelectual do rapaz, desejava levá-lo para Belo Horizonte. Propunha-se até a custear seus estudos na capital mineira. Mas João Cândido não concordou. Os minguados mil-réis que Chico ganhava eram indispensáveis ao orçamento doméstico. Sobretudo porque a família aumentava, pois além dos nove filhos do primeiro casamento, João Cândido foi pai seis vezes com dona Cidália.
Em 1925, ingressou no comércio. Primeiro, como auxiliar de cozinha no Bar do Dove. Em seguida, na venda de José Felizardo Sobrinho. Rigor dos velhos tempos: das seis e meia da manhã às oito da noite, o rapazinho vivia na azáfama de pesar feijão, cortar linguiça, arrumar prateleiras, varrer o chão. O salário era de treze mil réis. Tudo bem. A única contrariedade era servir bebida alcoólica.
‘A minha tragédia era vender cachaça. O sujeito bebia, caía e eu tinha que carregar.’
Para todo mundo, deixara de ser o menino aluado que conversava com Espíritos. Isso parecia coisa do passado. Puerilidades de um garoto extravagante. Agora, integrado na comunidade católica, tal como queriam seu pai e o padre Scarzelli, obedecia rigidamente às recomendações que lhe eram impostas pela Igreja. Confessava, comungava, comparecia as missas, acompanhava procissões. O Espírito de dona Maria João nunca mais aparecera.
***
Os fenômenos, porém, continuavam. Em maio de 1927 – Chico já era então um rapazinho – sua irmã mais nova, Maria da Conceição, caiu gravemente doente. Tinha violentos acessos de loucura. Os espíritas diziam que se tratava de um caso de obsessão. Graças a essa obsessão, a família Xavier começou a travar intimidade com o Espiritismo. Tratada por diversos médicos, a moça não apresentava nenhum sinal de melhora. Acabaram aceitando o oferecimento de um casal de médiuns, Hermínio e Carmem Perácio. Pouco depois, Maria da Conceição começou a dar mostras de recuperar a razão, vindo a ficar inteiramente curada. Na primeira sessão realizada em casa de João Cândido, estava reservada uma grata surpresa para Chico. Após uma ausência de sete anos, o Espírito de dona Maria João reapareceu. E, através da mediunidade grafológica de Carmem Perácio, dirigiu uma extensa mensagem ao marido e aos filhos, referindo-se de maneira particular a Chico. E, comunicando-lhe novos caminhos que ele deveria percorrer.
‘….a meu ver, tive três períodos distintos em minha vida mediúnica. O primeiro, de completa incompreensão para mim, é aquele dos cinco anos de idade, quando via minha mãe desencarnada, a proteger-me, até os dezessete anos, época em que me via sob influência de entidades felizes e infelizes, até que a misericórdia do Senhor penetrou em nossa casa em maio de 1927.’
No mês seguinte, os companheiros que participariam da reunião em casa da família Xavier, decidiram fundar um Centro. Restava eleger um presidente. Todos pensaram em Perácio, mas ele morava a 100 quilômetros de Pedro Leopoldo. Foi então que um companheiro de faces avermelhadas e eloquência inflamada, ofereceu-se para dirigir o Centro. Surgia o Centro Espírita Luís Gonzaga. Chico, seria o secretário.
No dia seguinte à fundação, porém, acontecia a primeira surpresa. O irmão inflamado, de faces rubras, renunciava à presidência alegando sua condição de membro de uma família católica tradicional. Só então, os companheiros descobriram a razão de seu entusiasmo e de seu rubor: o renunciante havia se enchido de vinho.
Com a renúncia, José Cândido, irmão mais velho de Chico, assumiu a presidência do Centro. Pouco depois, Chico psicografaria sua primeira mensagem.
Na noite de 8 de julho de 1927, como acontecia todas as sextas-feiras, houve reunião no Centro Espírita Luís Gonzaga. Tudo transcorria normalmente, quando dona Carmem Perácio, que presidia os trabalhos, comunicou a Chico que um Espírito gostaria de se comunicar através dele. Para tal, solicitava ao médium apanhar lápis e papel que se encontravam em cima da mesa. Ia testar a sua capacidade de psicografar.
‘Obedeci ao conselho recebido e, de imediato, um amigo espiritual escreveu 17 páginas, usando a minha mão, com grande surpresa de minha parte, conquanto registrasse fenômenos mediúnicos em minha experiência pessoal desde a infância.’
Todo aprendizado é um exercício de paciência e humildade. Chico sentiu isso quando as mensagens psicografadas começaram a se amiudar. O exercício era extenuante. O médium tinha de se amoldar, digamos, às mãos dos Espíritos. Pior do que carregar pedra.
Chico, sentia como se um cinto de ferro fosse lhe comprimindo a cabeça aos poucos. O braço parecia se mineralizar, virar barra de ferro, pesado, mas arrastado por uma força muito grande. Ficava extenuado. O estado psicológico oscilava entre extremos de bom e mau humor. Haveria alteração do subconsciente do médium nas mensagens recebidas? É possível. Tanto assim que, durante os quatro anos que durou a aprendizagem, os Espíritos não assinavam as mensagens.
Durante estes anos, Chico trabalhou firme no Centro Espírita Luís Gonzaga, então localizado na casa de seu irmão, José Cândido.
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Aos poucos, Chico foi aperfeiçoando sua faculdade de psicografia. Numa reunião realizada em janeiro de 1929, no Centro Espírita Luís Gonzaga, dona Carmem Perácio, teve uma visão simbólica da futura missão, como dizem os espíritas, de Chico.
‘Afirmou nossa irmã que virá muitos livros em torno de mim, trazidos por amigos desencarnados. Eu não tinha qualquer pensamento a respeito do assunto…’
As mensagens psicografadas, porém, se multiplicavam. Em todas elas pregava-se o amor, a compreensão e a tolerância entre os homens. Chico sentiu-se então em um dilema. Por que não as divulgá-las? Mas publicá-las com o nome de quem? O médium sentia escrúpulos. Afinal, não se tratava de obras suas.
Em conversa com o irmão José Cândido e alguns amigos de Pedro Leopoldo, estes mostraram-se favoráveis à publicação. Mas, para dissipar as dúvidas, resolveram escrever para o Aurora, um jornal espírita do Rio de Janeiro, expondo o problema. Assinar ou não assinar? Inácio Bittencourt, diretor da publicação, respondeu que não via nenhum inconveniente em publicar aquelas páginas com o nome do médium. Ninguém poderia afirmar se eram ou não de Chico.
Foi a partir daí que o nome F. Xavier (como Chico assinava), começou a figurar em várias publicações, assinando sobretudo poesia. Seus trabalhos apareciam no Jornal das Moças e no Suplemento Literário de O Jornal, ambos do Rio de Janeiro, e no Almanaque de Luso-Brasileiro, editado em Portugal.
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O médium achava-se apto a sintonizar com os mais diversos tipos de sensibilidade. Foi então que o Espírito Emmanuel tornou-se seu guia. O primeiro encontro dos dois ocorreu em fins de 1931. Uma tarde, o médium descansava debaixo de uma árvore, próximo a um açude, na saída de Pedro Leopoldo, quando viu um Espírito aproximar-se, vestia uma túnica semelhante à dos padres, e indagou se ele, Chico, estava resolvido a utilizar sua mediunidade na difusão do Evangelho de Jesus. Chico assentiu, perguntando se Emmanuel o achava em condições.
‘Perfeitamente. Desde que você procure respeitar os três pontos básicos para o serviço: 1º – disciplina; 2º – disciplina; 3º – disciplina.’
Segundo Chico, a última encarnação de Emmanuel fora como o Jesuíta Manoel da Nóbrega, um dos fundadores da Cidade de São Paulo. Há dois mil anos, Emmanuel vivera em Roma. Chamava-se Publius Lêntulus e era senador. Pouco depois, reencarnou como escravo. Cristão, morreu na Arena, dilacerado pelas feras, aos gritos de prazer da nobreza ociosa que cercava os césares.
‘Desde que Emmanuel assumiu o comando de minhas faculdades, tudo ficou mais claro, mais firme. Ele apareceu em minha vida mediúnica assim como alguém que viesse completar a minha visão real da vida.’
Neste mesmo ano de 1931, Chico psicografou o primeiro poema de um morto: Casimiro Cunha. Seria praticamente impossível que o moço de Pedro Leopoldo conhecesse o poeta fluminense, àquela altura esquecido em sua própria terra. Cego desde os 16 anos, Casimiro Cunha (1880-1914) nascera, vivera e morrera em Vassouras.
Em seguida, foram surgindo poemas assinados por figuras da mais alta cotação na bolsa literária das letras brasileiras e portuguesas: Castro Alves, Alphonsus de Guimarães, Olavo Bilac, Antônio Nobre, Fagundes Varela, João de Deus, Guerra Junqueira, D. Pedro II, Raimundo Correa, Casimiro de Abreu, Júlio Diniz, Cruz e Souza e muitos outros.
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No ano seguinte, 1932, Manuel Quintão, da Federação Espírita Brasileira, reuniu todas aquelas poesias em livro, com título por si só, já era um achado e um chamariz: Parnaso de Além-Túmulo. A repercussão foi explosiva. Caíra uma bomba bem no meio da aldeia literária brasileira.
‘Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, então ele merece ocupar quantas cadeiras quiser na Academia Brasileira de Letras.’ (Monteiro Lobato)
‘Deve haver algo de divindade no fenômeno Francisco Xavier. O milagre de ressuscitar espiritualmente os mortos pela vivência psicográfica de inéditos poemas é prodígio que somente pode ocorrer na faixa do sobre-humano.’ (Menotti del Pichia)
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Pouco depois, ingressava na antiga inspetoria Regional do Serviço de Fomento da Produção Animal, órgão do Ministério da Agricultura, no cargo de auxiliar de serviço.
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Gente de todo o país, inclusive do exterior, se desloca àquela perdida região das Gerais, desbrava séculos antes pelo bandeirante Fernão Dias Paes em sua busca de ouro. Os novos bandeirantes, espichados nas poltronas de seus carros ou sentados nos bancos dos velhos trens da Central, iam em busca de ouro, que o tempo não desgasta e o ladrão não rouba.
A responsabilidade de Chico aumentou. Para atender a todos, multiplicou-se, nas sessões públicas, psicografava cerca de 700 receitas. A maioria delas, ditada pelo Espírito do médico Bezerra de Menezes. Todas prescrevendo tratamento homeopático. Sua psicografia apresentava fenômenos raríssimos, como a xenografia (escrever em idioma que o médium ignora) e a escrita invertida (mensagem escrita ao inverso, da direita para a esquerda, legível ao espelho ou contra a luz).
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Os livros foram se sucedendo. Poucos escritores brasileiros conseguiam vender tanto quanto Chico. Mas ele não ficava com um centavo. Os direitos autorais integrais eram destinados às obras assistenciais da Federação Espírita Brasileira e instituições de caridade.
Durante a psicografia, aconteciam fenômenos curiosos. Em julho de 1941, ao concluir a psicografia de Paulo e Estevão, romance de Emmanuel, Chico dizia que ‘os benfeitores espirituais me permitiam contemplar quadros do Mundo Espiritual’.
O mesmo fenômeno se repetiria dois anos mais tarde, quando o médium psicografava Nosso Lar, atribuído ao Espírito André Luiz. O livro, que conta a vida numa colônia de Espíritos próxima à Terra, é um dos grandes best-sellers de Chico.
Pois bem, em agosto de 1943, quando estava psicografando Nosso Lar, conta Chico que, em companhia dos Espíritos de Emmanuel e André Luiz, viajou até as regiões suburbanas descritas no livro.
‘Esse acontecimento se deu, não por merecimento de minha parte, mas para que, em minha ignorância, eu não entravasse o trabalho de André Luiz por meu intermédio, de vez que eu estava sentindo muita perplexidade no início da psicografia do primeiro livro dele.’
Entusiasmado com sua mediunidade, Chico Xavier decidiu estudar o fenômeno da psicografia em si mesmo. O médium achava que poderia prestar uma cooperação valiosa aos estudiosos. Durante algum tempo, ficou matutando sobre o assunto. Um dia, decidido a pôr logo mãos à obra, resolveu consultar seu guia.
‘Perguntei a Emmanuel o que ele pensava. E ele me respondeu: ‘Se a laranjeira quisesse estudar pormenorizadamente o que se passa com ela, na produção de laranjas, com certeza não produziria fruto algum. Não queremos dizer, com isso, que o estudo para assuntos de classificação em mediunidade deva ser desprezado. Desejamos tão-só afirmar que, assim como as laranjeiras contam com pomicultores e botânicos que as definem, assim também os médiuns contam com autoridades humanas que os analisam pelo tipo de serviço que oferecem. Para nós, o que interessa agora é trabalhar’.’
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Foi então que surgiu o convite do médico e médium Waldo Vieira para se fixar em Uberaba.
Uberaba, cidade tradicionalmente católica, sede de bispado, já era velha conhecida do médium. A primeira vez que Chico a visitou foi em 1937, como integrante da comitiva do Dr. Rômulo Joviano, que levava àquela cidade planos para construção de um parque, autorizado pelo então ministro da Agricultura, Dr. Fernando Costa. Muitas vezes voltaria a Uberaba, no cumprimento de suas funções, quando das exposições pecuárias, ali realizadas anualmente em maio.
Agora, neste início de 1959, Chico Xavier vinha para ficar. A acolhida não podia ser mais calorosa. Os amigos procuraram todos os meios para facilitar a adaptação do médium ao seu ambiente. Com sua humildade, Chico vai morar numa pequena casa. Pouco depois, começou a colaborar na construção da Comunhão Espírita Cristã.
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Chico Xavier, vivia em Uberaba, com a mesma simplicidade com que vivera quase meio século em Pedro Leopoldo, cumprindo rigorosamente suas obrigações mediúnicas e profissionais. Funcionário exemplar, nunca faltou ao serviço. Mas os problemas com os olhos começaram a se acentuar de maneira grave. E, em 1963, após 30 anos de serviços prestados como auxiliar de serviço na antiga Inspetoria Regional do Serviço de Fomento da Produção Animal, aposentava-se na categoria de escriturário, nível 8, por incapacidade.
Aposentado no Estado, manteve-se ativíssimo no serviço espiritual. Continuava psicografando madrugada adentro. Dessa forma, pôde manter a média de publicação de três livros por ano. Sem deixar de atender quem quer que fosse procurá-lo.
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A cidade ganhava um novo motivo para comentários: os casos extraordinários do médium. Como o acontecido com dona Júlia Gomes de Oliveira. Na noite de 28 de junho de 1963, ela se apresentou na sessão da Comunhão Espírita Cristã. Pessoa inteiramente desconhecida em Uberaba, fora até lá em busca de consolo ou orientação para o momento trágico que passava.
Como de praxe, dona Júlia escreveu seu nome e idade numa folha de papel. Chico começou a psicografar uma mensagem, assinada por Wilson de Oliveira. Tratava-se do filho de dona Júlia, que, um mês antes morrera afogado numa represa. Ninguém ali sabia do drama daquela senhora, residente na cidade de Barretos, em São Paulo.
Em sua mensagem, Wilson procurava tranquilizar a mãe. Absolvia-a de qualquer culpa, coisa que preocupava bastante a mulher, pois fora ela quem convidara o filho a ir tomar banho na represa. O mais impressionante, porém, se deu com a assinatura que o Espírito do rapaz apôs ao pé da página. A letra era idêntica à de Wilson quando vivo, o que provocou um incontrolável acesso de choro em dona Júlia. Concluída a sessão, Elias Barbosa, médico e biógrafo de Chico, teve ocasião de comparar a assinatura psicografada com a existente na carteira de trabalho do rapaz, verificando a extrema semelhança entre ambas.
***
A um repórter que certa vez indagou se gostava de rosas, Chico explicou:
‘Os Espíritos me pediram que plantasse, ao redor da casa, um certo número de flores. Como gosto de rosas, plantei rosas. Os Espíritos explicam que as flores têm um corpo dinâmico que vai até o perfume, embora só vejamos as pétalas. O perfume cria uma atmosfera balsâmica, propiciando mais recursos para a permanência dos Espíritos em nosso meio.’
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Além das rosas e de seus bichos, Chico quase nada possui. Gosta de andar a pé. Sua rotina inclui uma caminhada diária, de casa até a praça principal de Uberaba. Ali, no Bar 1001, toma um cafezinho. Na ótica ao lado, para e conversa alguns minutos com o proprietário, seu Otávio. Em seguida, ruma para o Correio, em busca da correspondência – mais de 50 cartas por dia.
‘Almoço ao meio-dia.
Refeição comum do interior do Brasil. Nas horas da tarde, ocupo-me da correspondência usual e em datilografar as páginas escritas pelos Benfeitores Espirituais por nosso intermédio. Isso, depois do trabalho com os Amigos Espirituais, psicografando ou revendo com eles as páginas de autoria deles mesmos, sempre com a assistência de Emmanuel. Aos domingos, dedico-me aos trabalhos de correspondência mais íntima. Durmo sempre depois das duas horas da madrugada. Sem jantar. Deixei de jantar quando tinha 40 anos. E minha única noite de folga, aquela que dedico apenas ao descanso de meu corpo, já doente, é a noite de domingo.’
Naquela época, Chico julgava que seria salvo milagrosamente, mediante uma intervenção cinematográfica dos Espíritos. Ledo engano. Emmanuel advertiu-o para as inevitáveis imperfeições do corpo, e recomendou-lhe que não menosprezasse a medicina, que ‘está no mundo em nome da Divina Providência’.
O médium conformou-se. Conta-se que Zé Arigó, lá pelos idos dos anos 60, quando se achava no auge, ofereceu-se para operá-lo da vista. Chico teria se esquivado, delicadamente. Verdade ou não, o fato é que Chico, ficou praticamente cego do olho esquerdo – sujeito a constantes sangramentos – e com apenas 50% de visão na vista direita. Mas o médium achava que todo esse sofrimento fora benéfico.
‘Transcorridos tantos anos daquele diálogo com Emmanuel, agradeço ao Senhor a bendita doença que carrego nos olhos, sempre tratada por médicos amigos Espirituais, pois ela tem sido em todo esse tempo um agente providencial, induzindo-me à reflexão e ensinando-me a respeitar o sofrimento dos outros.’
E a divina tarefa do médium Chico Xavier continuou sem que um precioso minuto fosse perdido, apesar de todas as dificuldades físicas, vindo a psicografar 412 obras, em mais de 25 milhões de exemplares, todos com direitos autorais cedidos a entidades assistenciais. Ressaltamos, a sua incansável dedicação em benefício dos mais necessitados, atendendo, semanalmente, a centenas de pessoas na Vila dos Pássaros, com alimentos e palavras de conforto e esperança.
Francisco Cândido Xavier desencarnou em 30 de junho de 2002, deixando a todos um exemplo de vivência e amor ao próximo como verdadeiro seguidor do Mestre Jesus.”
Bibliografia:
XAVIER, Francisco Cândido (psicografia de); Espírito de Emmanuel. Atenção. 22ª Edição. Araras/SP: IDE, 2010.