Estranha moral: odiar os pais

Essa reflexão tem como referência o Capítulo XXIII: Estranha moral, do livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, em que certas palavras atribuídas ao Cristo contrastam com o seu modo habitual de falar e agir diante de interpretações literais que escurecem a sublimidade de sua doutrina.

No Capítulo XXIII, citam-se passagens evangélicas relacionadas a: odiar os pais; abandonar pai, mãe e filhos; deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos; e não vim trazer a paz, mas a divisão.

Não raro, observamos textos evangélicos que não condizem com a amorosidade do Mestre Jesus. Com certeza, a intepretação não pode ser literal.

Importante recordar que o Cristo não deixou nada escrito. As palavras de vida eterna, os seus ensinamentos e exemplos ficaram gravados nos corações e nas mentes dos discípulos e das pessoas, e transmitidas e multiplicadas oralmente.

Os evangelhos foram escritos muito tempo depois de sua morte e ressureição, aproximadamente de 60 a 100 anos DC, ou seja, nenhum deles foi redigido enquanto Jesus viveu.

Em decorrência, alguns textos sofreram problemas de traduções, em especial quando do grego, sendo lícito acreditar que o pensamento do Mestre pode não ter sido bem expresso, ou, passando de um idioma para outro, há de ter ocorrido alguma alteração.

Além disso, nos textos evangélicos há diferenças que evidenciam a influência pessoal de quem redigiu, sem deixar de lado a inspiração divina.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, chamados de sinóticos, têm aspectos comuns e diferenças. As semelhanças vão de algumas palavras a textos inteiros. As diferenças nas narrativas são de fatos e acontecimentos relacionados à vida e à missão do Cristo, com certas discrepâncias. Mateus e João foram apóstolos de Jesus, enquanto Lucas e Marcos não conviveram com ele.

Ademais, vários textos são eivados de alegoria, conduzindo a não fazer interpretação literal, porquanto uma mensagem equivocada não exprime com exatidão o real pensamento, enganando o verdadeiro sentido.

Logo, palavras tomadas equivocadamente tendem a transformar a missão do Cristo de amor e paz em outra de perturbação e discórdia, consequência absurda que o bom senso repele.

Do que foi dito, não há como mudar o texto evangélico, mas a interpretação sim.

A interpretação tem que ser segundo a lei de Deus, a lei maior do amor traduzida na caridade, com os atributos divinos, à imagem e semelhança do Criador eterno, em especial com bondade, justiça e misericórdia. Têm que ser palavras da verdade imutável, de fé, esperança e consolo.

Devemos perguntar: Será mesmo possível que Jesus, a personificação da doçura e da bondade, que não cessou de pregar o amor do próximo, haja dito isso? Não estarão essas palavras em contradição flagrante com os seus ensinamentos e exemplos?

Importa, primeiro, saber se Ele realmente pronunciou certas palavras e, em caso afirmativo, se, no idioma em que se exprimia, as palavras tinham o mesmo significado.

Destaca-se que o Evangelho de Jesus é código moral por excelência porque trata da lei maior de amor, cujos preceitos orientam como deve a criatura humana se conduzir no bem, em qualquer tempo, situação ou contexto.

É preciso se libertar de interpretações literais que ainda se encontram enraizadas no nosso íntimo. O Evangelho é verdade e base para a redenção das almas a caminho do Pai.

A chave para compreender e vivenciar a mensagem de Jesus é de ser entendida no sentido espiritual e atemporal. A inteligência da leitura dos evangelhos conduz a uma interpretação espiritual que Jesus dá aos seus ensinos. Se os Evangelhos fossem amontoados de alegorias sem significação espiritual, nenhum valor teria.

Para bem compreender certas passagens é necessário que se conheça o valor das palavras nelas empregadas que caracterizam os costumes da sociedade judia naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras muitas vezes têm sido mal interpretadas, causando incerteza.

Nesse contexto, dos itens 1 ao 3 do Capítulo XXIII: Estranha moral, do livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, temos o tema “Odiar os pais”, que se baseia em duas passagens evangélicas:

“1. Como nas suas pegadas caminhasse grande massa de povo, Jesus, voltando-se, disse-lhes: ‘Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai e a sua mãe, a sua mulher e a seus filhos, a seus irmãos e irmãs, mesmo a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. E quem quer que não carregue a sua cruz e me siga, não pode ser meu discípulo. Assim, aquele dentre vós que não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo.’ (Lucas, 14: 25 a 27 e 33.)

2. ‘Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe, mais do que a mim, de mim não é digno; aquele que ama a seu filho ou a sua filha, mais do que a mim, de mim não é digno.’ (Mateus, 10: 37.)”

A respeito dessas passagens, Kardec comenta:

“3. Certas palavras, aliás muito raras, atribuídas ao Cristo, fazem tão singular contraste com o seu modo habitual de falar que, instintivamente, se lhes repele o sentido literal, sem que a sublimidade da sua doutrina sofra qualquer dano. Escritas depois de sua morte, pois que nenhum dos Evangelhos foi redigido enquanto Ele viveu, lícito é acreditar-se que, em casos como este, o fundo do seu pensamento não foi bem expresso, ou, o que não é menos provável, o sentido primitivo, passando de uma língua para outra, há de ter experimentado alguma alteração. Basta que um erro se haja cometido uma vez, para que os copiadores o tenham repetido, como se dá frequentemente com relação aos fatos históricos.

O termo odiar, nesta frase de Lucas: Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai e a sua mãe, está compreendido nessa hipótese. A ninguém acudirá atribuí-la a Jesus. Será então supérfluo discuti-la e, ainda menos, tentar justificá-la. Importaria, primeiro, saber se Ele a pronunciou e, em caso afirmativo, se, na língua em que se exprimia, a palavra em questão tinha o mesmo valor que na nossa. Nesta passagem de João: ‘Aquele que odeia sua vida, neste mundo, a conserva para a vida eterna’, é indubitável que ela não exprime a ideia que lhe atribuímos.

A língua hebraica não era rica e continha muitas palavras com várias significações. Tal, por exemplo, a que, no Gênesis, designa as fases da Criação: servia, simultaneamente, para exprimir um período qualquer de tempo e a revolução diurna. Daí, mais tarde, a sua tradução pelo termo dia e a crença de que o mundo foi obra de seis vezes vinte e quatro horas. Tal, também, a palavra com que se designava um camelo e um cabo, uma vez que os cabos eram feitos de pelos de camelo. Daí o haverem-na traduzido pelo termo camelo, na alegoria do buraco de uma agulha.

Cumpre, ademais, se atenda aos costumes e ao caráter dos povos, pelo muito que influem sobre o gênio particular de seus idiomas. Sem esse conhecimento, escapa amiúde o sentido verdadeiro de certas palavras. De uma língua para outra, o mesmo termo se reveste de maior ou menor energia. Pode, numa, envolver injúria ou blasfêmia, e carecer de importância noutra, conforme a ideia que suscite. Na mesma língua, algumas palavras perdem seu valor com o correr dos séculos. Por isso é que uma tradução rigorosamente literal nem sempre exprime perfeitamente o pensamento e que, para manter a exatidão, se tem às vezes de empregar, não termos correspondentes, mas outros equivalentes ou perífrases.

Estas notas encontram aplicação especial na interpretação das Santas Escrituras e, em particular, dos Evangelhos. Se se não tiver em conta o meio em que Jesus vivia, fica-se exposto a equívocos sobre o valor de certas expressões e de certos fatos, em consequência do hábito em que se está de assimilar os outros a si próprio. Em todo caso, cumpre despojar o termo odiar da sua acepção moderna, como contrária ao espírito do ensino de Jesus.”

Assim no que toca a essa passagem evangélica, reforça-se o que o Codificador expressou: A ninguém acudirá atribuí-la a Jesus. Será então supérfluo discuti-la e, ainda menos, tentar justificá-la”; e “é indubitável que ela não exprime a ideia que lhe atribuímos”.

Antônio Luiz Sayão, no livro Elucidações evangélicas, escreveu:

“Os santos Evangelhos são o código, ou a tábua dos preceitos e sentenças do divino Mestre. Para bem se conhecerem esses preceitos e sentenças, necessário se faz estudá-los, interpretando-os, de modo a lhes alcançar o sentido profundo. Para isso, não basta ter deles a compreensão literal ou gramatical; é preciso pesquisar-lhes os fundamentos, apreciá-los em conjunto, buscar-lhes o espírito.

Jesus veio dar cumprimento ao Decálogo e confirmar as profecias que lhe eram relativas. Veio congraçar a Humanidade, fazendo-lhe ver que os seus membros devem unir-se pela amizade, pelo afeto, pelo carinho, que produzem a concórdia, pelo amor paterno e filial.

Veio, enfim, mostrar-lhe que a vida real é a do Espírito liberto da escravidão da matéria, isto é, purificado, e que o Espírito só se depura na adversidade, que é o crisol das grandes obras.

Ele, portanto, jamais poderia ter dito o que quer que importasse em condenação do amor da família. O que, com relação a esta, como a respeito de tudo mais, condenou foi o excesso, que em todas as coisas prejudica o ser humano e o transvia. É dever do homem consagrar-se à família e preencher para com esta todas as obrigações que lhe impõem as leis divinas, cuja síntese é a lei do amor. Não deve, porém, fazer do cumprimento dessas obrigações um culto.

Não lhe deve sacrificar o amor ao próximo, nem os interesses superiores e a felicidade real de seus outros irmãos em Deus, pois que isso seria. egoísmo e o egoísmo contravém aos ensinos do Filho de Deus.

 Assim, aquele que, para agradar a seu pai ou a sua mãe, praticar um ato contrário a esses ensinos não é digno do Mestre, não pode ser seu discípulo. Essa a lição constante dos versículos acima, para cuja compreensão cumpre não constituam obstáculo os termos odiar e aborrecer, porquanto nenhum desses vocábulos traduz com exatidão a palavra correspondente no texto hebraico, a qual não tem a significação violenta daquelas outras e carece de equivalente nos modernos idiomas.

Além disso, importa não esqueçamos que Jesus frequentemente usava de expressões demasiado fortes, para impressionar os Hebreus de então, profundamente materializados.

Quanto ao ser a vida do Espírito a Única real e, pois, a única digna de apreço e valiosa, a prova temo-la em que, falando a seus discípulos, o Senhor lhes recomendava que nenhuma importância dessem à vida do corpo, sempre que lhes fosse mister sacrificá-la, a bem daquela outra.

A cruz a que aludia, quando sentenciava que quem não tomar a sua para o seguir não pode ser seu discípulo, é a das expiações e das provas necessárias e inevitáveis, por isso que mediante elas somente é que o Espírito se depura, quando as aceita com humildade, resignação e, até, reconhecimento, conforme o exemplificou Ele que, aliás, era justo, inocente e imaculado, que, por conseguinte, nada tinha que expiar, nem que o tornasse merecedor de qualquer provação.

Dizendo que “aquele que acha a sua vida a perderá e que aquele que perde a vida por sua causa a achará”, o Divino Mestre se dirigia especialmente a seus discípulos, para lhes significar que, dentre eles, o que falisse à sua missão, para conservar a vida humana, renunciaria ao acabamento da obra, comprometendo, assim, gravemente, a sua vida espiritual; que, ao contrário, aquele que não recuasse diante da morte e a sofresse, para levar a cabo a obra, desempenhando a sua missão, teria a vida eterna.

Tais palavras, entretanto, podem e devem considerar-se como dirigidas, no mesmo sentido, aos que posteriormente, em todas as épocas, viessem ou venham a constituir-se continuadores da alta missão em que se investiram os apóstolos e os discípulos imediatos do Cristo.”

Pelo que foi dito, pode-se refletir ser inútil tentar justificar certos textos evangélicos contraditórios à lei maior do amor revelada pelo Cristo em sua missão Terra. Seria buscar interpretações ainda mais equivocadas, sendo que em outras passagens o Mestre deixou muito claro como se deve praticar o verdadeiro amor divino.

Além disso, o Cristo jamais poderia ter dito o que quer que importasse em condenação do amor da família”.

Autor: Juan Carlos Orozco

Bibliografia:

BÍBLIA SAGRADA.

DIAS, Haroldo Dutra. O Evangelho de João: interpretado e comentado.  1ª Edição. São Paulo/SP: Intelítera Editora Leal, 2022.

DIAS, Haroldo Dutra. Parábolas de Jesus: texto e contexto.  1ª Edição. Curitiba/PR: Federação Espírita do Paraná, 2011.

KARDEC, Allan; tradução de Guillon Ribeiro. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Da 3ª Edição francesa. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

KARDEC, Allan; tradução de Guillon Ribeiro. O Livro dos Espíritos. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

MOURA, Marta Antunes de Oliveira. Estudo aprofundado da doutrina espírita: Ensinos e parábolas de Jesus – Parte I. Orientações espíritas e sugestões didático-pedagógicas direcionadas ao estudo do aspecto religioso do Espiritismo. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2015.

MOURA, Marta Antunes de Oliveira de (organizadora). O evangelho redivivo: introdução ao estudo de O Evangelho Redivivo, Livro I. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

SAYÃO, Antônio Luiz. Elucidações evangélicas à luz da Doutrina Espírita. 16ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

SCHUTEL, Cairbar. Parábolas e Ensino de Jesus. 28ª Edição. Matão/SP: Casa Editora O Clarim, 2016.

VINICÍUS. Nas pegadas do mestre. 12ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2014.

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https://juancarlosespiritismo.blog/

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